O universo sem o eu e o vazio da matéria | B. Alan Wallace

Trecho do livro “Mente em  Equilíbrio – A meditação na ciência, no budismo e no cristianismo” de B. Alan Wallace. 

Na época do Buda, filósofos indianos defendiam uma ampla gama de pontos de vista sobre a natureza da realidade. Alguns afirmavam que o Universo era controlado por uma força sobrenatural, um ser supremo onipotente ou uma multidão de deuses. Outros encaravam os seres humanos como agentes independentes que experimentavam os resultados de suas ações. Outros ainda defendiam a predeterminação, declarando que o destino, ou karma, governava todas as coisas, embora os humanos se iludissem pensando que suas opções faziam realmente diferença. Ainda outros rejeitavam completamente qualquer espécie de causalidade, declarando que tudo ocorria devido a mero acaso. A despeito de suas diferenças, defensores de todas essas opiniões concordavam que havia uma causa primeira do Universo, como um criador divino ou uma substância inicial, primordial, da qual o mundo emergiu.

O Buda, ao contrário, adotou uma visão do Universo sem precedentes, como uma coleção de eventos naturais em dependência mútua, não admitindo nenhuma influência sobrenatural ou intervenção por parte de um criador ou deus fora do Universo. Por exemplo, ele atribuía as origens do sofrimento humano às nossas atribulações mentais, como desejo, hostildiade e delusão, e não a um deus que cria o mundo e nos pune por nossos pecados. Todos os fenômenos do mundo poderiam ser compreendidos em termos de causação natural, incluindo processos mentais e físicos. Com esse passo arrojado, ele rejeitava todas as quatro teorias correntes da causalidade.

O caminho para compreender a realidade como ela era, Buda propôs, tomava como ponto de partida o mundo da experiência, em vez de um mundo objetivo, físico, que imaginamos existir de modo independente. Com base na experiência, ele procurou compreender a realidade do sofrimento, suas causas fundamentais, a possibilidade de libertação do sofrimento e o caminho para essa libertação. Como resultado de suas investigações, ele concluiu que o mundo fenomênico tem três características fundamentais: todos os fenômenos que surgem em função de causas e condições estão sujeitos à mudança; todas as experiências afetadas por atribulações mentais ( por exemplo,  desejo, hostilidade e delusão) são insatisfatórias; e, um eu, ou ego imutável, unitário e independente, não será encontrado em parte alguma, nem entre fenômenos físicos ou mentais, nem em qualquer outro lugar. Além dessas ‘’três marcas da existência’’, ele tratou da importância de superar a delusão de apreender os fenômenos como existindo substancialmente em si mesmos e por si mesmos.

Embora o budismo seja amplamente conhecido pela ênfase no ‘’não-eu’’, isso não significa que Buda refute completamente a existência do “eu”. De fato, numa ocasião em que foi interrogado sobre a existência de um eu, recusou-se a dar uma resposta afirmativa ou negativa. Segundo a própria explicação que deu mais tarde, se tivesse negado completamente a existência de um eu, isto poderia ter sido interpretado erroneamente como uma forma de niilismo ou uma completa rejeição filosófica da realidade – posição que sempre teve o cuidado de evitar.

Para compreender o significado do “não-eu” nos ensinamentos de Buda, é preciso refletirmos sobre o senso de identidade em termos do pressuposto de que somos imutáveis, unitários e independentes. Você pensa em si próprio como tendo a mesma identidade estática dia após dia, ano após ano? Você hoje é a mesma pessoa de décadas atrás? Se acha que sim, examine com cuidado seu corpo e mente para ver se consegue encontrar algo que não tenha se modificado. Você se imagina como um “eu” unificado, singular, existindo separadamente dos inúmeros processos que estão sempre em mudança no seu corpo e na sua mente? Nesse caso, veja se consegue identificar, com base na experiência, essa entidade singular chamada “você”. Por fim, você tem uma percepção de si mesmo como algo que existe independentemente de seu corpo, de sua mente e de seu ambiente? Em sua experiência, procure ver se há alguma prova da existência desse ego independente em seu corpo e em sua mente, ou que seja distinto deles. Por exemplo, você consegue se identificar como idêntico a alguma função específica ou região do cérebro, ou a alguma outra parte do corpo? Ou elas seriam apenas partes e funções do corpo, ou seja, componentes do todo? Do mesmo modo, quando você observa seus pensamentos, emoções, memórias e percepções, será que algum deles é, realmente, você? Ou são simplesmente o que parecem ser: pensamentos, emoções, memórias e percepções?

Observe, então, com cuidado, como eventos físicos e mentais influenciam casualmente uns aos outros. Examine como um pensamento influencia um pensamento ou uma emoção posteriores, como suas emoções influenciam o corpo e como as sensações em seu corpo influenciam os pensamentos, desejos, intenções e emoções. Por exemplo, você pode ter um pensamento negativo sobre o comportamento do seu cônjuge, que depois o deixará num clima de irritação com relação aos filhos. Isso pode levar a um surgimento de stress em seu corpo, o que por sua vez pode fazer com que você se sinta excessivamente autocrítico, resultando em depressão e baixa autoestima. Podem essas interações causais serem compreendidas internamente – em termos dos próprios processos psicofísicos – ou você vê evidências de que elas são controladas ou influenciadas por um “eu” ou ego distinto, que é independente do corpo e da mente?

Em suas interações com as outras pessoas e o mundo ao seu redor, observe se o senso que você tem de si mesmo como um ego imutável, unitário, independente, age como base para o desejo e a hostilidade autocentrados. Por exemplo, quando se concentra negativamente nos defeitos de uma outra pessoa, você se sente superior a essa pessoa?  Sente que os defeitos dela são intrínsecos à identidade dela, assim como sua superioridade é intrínseca a seu verdadeiro “eu”? Um sentimento de sua identidade distinta não ergue barreiras entre você e as outras pessoas e não o confina à sensação de que você não pode se modificar, que está encurralado pelo passado? Todas as sensações desse tipo podem estar baseadas em uma delusão fundamental de compreender mal a natureza da própria identidade. Se você se identifica com seus defeitos e limitações, pensando em si como a mesma pessoa imutável que sempre foi, poderá se precipitar num fosso de autocondenação. Se você se concentra em suas virtudes, enquanto procura os defeitos dos outros, acabará enredado num sentimento de superioridade, continuando eternamente a desprezar os outros. A meditação pode romper esse senso fossilizado de identidades próprias e alheias, mostrando como todos nós estamos em transição – corpos e mentes num estado de fluxo. Talvez então consigamos parar de nos concentrar nas falhas dos outros, para, com renovado vigor e espontaneamente, recriar a nós mesmos e as nossas relações dia após dia.

A visão budista é que nenhum “eu”, ego ou alma inerentemente existentes podem ser encontrados dentro ou separados do corpo e mente.  Mas isso não significa que uma pessoa não exista absolutamente ou que todos os seus pensamentos e ações sejam produzidos unicamente por processos químicos do corpo. Pensamentos, emoções, desejos e intenções, tudo influencia tanto os estados mentais quanto o corpo, assim como os processos fisiológicos influenciam a mente. A pessoa existe de fato, não como ego isolado, mas em função de uma coleção de eventos mentais e físicos que surgem a todo momento e interagem com o ambiente sempre em mudança. Quanto mais os psicólogos e neurocientistas investigam a mente e o cérebro, mais são arrastados para a conclusão de que não existe um “eu” isolado que governa a mente ou controla o cérebro. Sem dúvida, as interações mente-cérebro podem ser compreendidas internamente, sem referência a um “eu” que existe independentemente da mente e do corpo.

O budismo acrescenta a importante noção de que o senso inato desse “eu” que existe em si mesmo é uma delusão fundamental, que age como base do desejo e do apego com relação a si mesmo e da hostilidade e do ódio com relação aos outros. E essas três toxinas da mente – desejo, hostilidade e delusão – se encontram na raiz de todo sofrimento. Quando alguém tem fome, é natural que procure comida e, quando tem medo, é natural que tente evitar o perigo. Essas respostas básicas são necessárias para nossa sobrevivência e não há nada de errado com elas. O problema surge quando imaginamos que existe uma separação absoluta entre nós e os outros e depois nos grudamos ao “eu” e “meu”, com um apego autocentrado, reagindo com hostilidade e agressividade contra qualquer “outro” que ameace nosso bem estar. A meditação nos ajuda a desenvolver uma consciência clara de como dar os passos adequados para atender as nossas reais necessidades e evitar o perigo, sem cair em fixações doentias que só nos causarão sofrimento.

Um exemplo prático é o seguinte: quando estiver calmamente meditando, recorde uma ocasião em que alguém o ofendeu, com palavras ou atos. Pense em uma ocasião em que foi ridicularizado ou maltratado, deixando que brotem os sentimentos de mágoa e, possivelmente, também de raiva. Então, com cuidado, examine o senso de “eu” que surge: quem é esse que está ferido, ofendido e com raiva? É o seu corpo? É a sua mente? Ou você tem a sensação de que a pessoa que está reagindo à injúria é distinta do seu corpo e mente? Esse senso de si mesmo como um ego independente é uma ilusão ou há uma base para ele na realidade? Leve depois esse exercício para a vida diária e, quando se encontrar em uma situação na qual sinta uma forte reação do ego, verifique a natureza desse forte senso de “eu”. Tal senso certamente existe. Mas há, realmente, algum ser que corresponda à experiência subjetiva de um “eu”, da sua identidade, ou isso é uma ilusão? Do mesmo modo, quando sentir que está no controle ou sem o controle da mente, confira, com cuidado, se você realmente existe como agente independente, responsável pelo seu corpo e sua mente.

Quanto mais forte é a sensação de ser um ego independente, maior a probabilidade de se  sentir ofendido por comentários grosseiros ou mesquinhos dos outros. É natural se sentir ofendido e ache que é justo tentar se proteger. Pense, porém, em todo o tempo e no esforço que você dedicou a mudar o comportamento de outras pessoas, e, depois, reflita sobre o quanto isso foi eficaz. Você acha que pessoas rudes querem realmente seguir o seu conselho, especialmente quando você as aconselha com um sentimento de superioridade moral? Em uma relação íntima e afetuosa, como um casamento ou uma amizade, há certamente espaço para ajudar a outra pessoa a modificar o comportamento, para que ela não magoe tanto a si mesma e aos outros. Isso faz parte da verdadeira amizade. Mas, como a maioria das outras pessoas não quer o nosso conselho, se pudermos, como passo inicial, não nos sentir ofendidos pelo comportamento delas, vamos nos poupar de muitas situações desgastantes. Por que deveríamos sofrer por causa das atitudes e do comportamento equivocados de outras pessoas quando já temos um número suficiente de problemas?

Contemplativos budistas investigaram o “eu” durante séculos e chegaram à conclusão de que esse ego independente jamais é encontrado. Tal investigação baseada na experiência é o caminho mais rápido para revelar a ilusão de um “eu” imutável, unitário e independente, e para nos libertar dela. O mesmo tipo de análise pode ser usado para sondarmos a natureza de todos os outros fenômenos. Por exemplo, o Buda assinalou que uma carruagem, assim como o ego, não existe como coisa substancial separada ou acrescida a suas diferentes partes. Nem a carruagem há de ser encontrada entre alguns de seus componentes individuais, nem toda a pilha desses componentes em si não constituem uma carruagem. O termo “carruagem” é algo que usamos para designar uma coleção de partes, nenhuma das quais, individual ou coletivamente, é uma carruagem. A carruagem só passa a existir quando chamamos essas partes de carruagem. Do mesmo modo, o termo “eu” é usado para designar o corpo e a mente, que não são, em si mesmos, um verdadeiro ego. “Eu” só passo a existir quando sou conceitualmente designado como tal. Quando usamos esses conceitos e convenções, incluindo as palavras “eu” e “meu”, tendemos a apreender os conceitos como sendo reais, independentes de nossas projeções. E isso leva a um interminável sofrimento. Os que estão livres da delusão ainda usam esses conceitos e palavras, mas não se deixam enganar por eles.

Não há nada de errado em usar essas palavras. Os problemas só surgem quando nos agarramos ao “eu” e ao “meu” como sendo absolutamente reais e distintos de todos os outros seres. É o que cria nosso senso de absoluta divisão entre nós mesmos e os outros é a raiz do racismo, da intolerância ideológica e dos conflitos de todos os tipos. Embora todas as coisas em que pensamos e que designamos pareçam existir postas à parte, pela natureza que lhes é inerente, todas são “vazias” de tal essência. Elas não estão separadas absolutamente de nós, não sendo, portanto, as causas “reais” e objetivas de nossa felicidade e de nosso sofrimento. Nossos pensamentos e atitudes estão emaranhados em tudo o que vivenciamos. Quando percebemos isso, podemos começar a diminuir nosso desapontamento e nossas frustrações, modificando nossas mentes, em vez de ficarmos esperando que o mundo exterior mude de acordo com nossos desejos.

As aparências de todos esses objetos da mente são ilusórias, na medida em que parecem existir por si mesmas, independentemente de nossas percepções, de nossos pensamentos e de nossa linguagem. Na realidade, porém, tudo o que vivenciamos surge apenas em relação à essas estruturas subjetivas de referência. Nesse sentido, tudo o que percebemos pode ser encarado como “aparência vazia”, semelhante às que existem num sonho. Elas parecem ser absolutamente objetivas, mas são “vazias” de existência própria em si mesmas e por si mesmas. De modo a despertar plenamente para a natureza última dos fenômenos, temos de perceber a natureza vazia não só do “eu”, mas também da mente e de todos os elementos físicos do Universo.

Se todos os fenômenos são vazios de uma natureza inerente, como, afinal, existem? Como podem funcionar? Aqui entram os ensinam.entos do Buda sobre a origem dependente Todos os fenômenos transitórios surgem em função de causas e condições anteriores. Mas tal causalidade não consiste de interações absolutamente objetivas entre fenômenos reais. Por exemplo, quando perguntaram ao Buda se o sofrimento era causado pelo próprio indivíduo, por outra pessoa, por ambos ou por nenhum dos dois, ele negou essas quatro alternativas. Se, no continuum em processo de sua existência pessoal, no momento de se engajar em um certo ato e no momento de vivenciar as consequências de tal ato a pessoa fosse única e idêntica a si mesmas, isso indicaria que ela existe como entidade imutável que persiste através do tempo. Mas não existem indícios de tal ego ou “eu” imutável. Todos os elementos de seu corpo e mente estão permanentemente num estado de fluxo, sem que nada permaneça idêntico entre um momento e outro. Contudo, se ela acha que sua identidade quando executa uma ação e sua identidade quando experimenta seus resultados são totalmente diferentes, está ignorando o continuum singular do fluxo da mente e as relações causais, coerentes, que funcionam como leis e conectam as experiências mais recentes às mais antigas.

Há, certamente, muitos fatores que contribuem para a criação de sofrimento, como a doença, as armas, os desastres naturais, o comportamento de outras pessoas e os nossos próprios pensamentos e atos. Todas essas influências contribuem para a experiêcia do sofrimento, mas o sofrimento em si não surge fundamentalmente de quaisquer desses fatores. Além de causas anteriores – como doença, calamidades naturais e guerras -, sua real existência depende do rótulo de “sofrimento” que projetamos sobre nossa experiência.

Isso pode ser compreendido mais facilmente no caso da criação de uma carruagem. Se alguém, aos poucos, monta as rodas, o chassi e o assento, exatamente quando o conjunto se torna uma carruagem? Quando pode fazê-la rodar? Ou quando ela desempenha a função de uma carruagem? Para descobrir, é preciso saber o que se pretende dizer com a palavra “carruagem”. Isso significa que a reunião de partes só se torna realmente uma carruagem quando se projeta o pensamento ou o rótulo “carruagem” sobre essas partes. Independentemente dessa designação subjetiva, as partes, por si mesmas, não se tornam uma carruagem. Da mesma forma, só deixa de ser uma carruagem quando a designação “carruagem” é retirada. A existência e a não-existência de uma carruagem depende não apenas de suas causas, partes e atributos objetivos, mas também dos pensamentos “isto é uma carruagem” e “isto não é mais uma carruagem”.

O mesmo se aplica a eventos subjetivos como o sofrimento. Desde que ue o sofrimento, como todos os outros fenômenos, não tem uma natureza que lhe seja inerente, independente de todos os rótulos e conceitos, ele não surge absolutamente de si mesmo, de outra coisa, de ambos ou de nenhum dos dois. Da mesma maneira, quando o sofrimento surge, ele só se torna “meu” sofrimento quando o apreendo como “meu”. Nada existe na natureza do sofrimento em si que o torne “meu”. Mas, quando me identifico com ele e o tomo como “meu”, ele é experimentado como tal. Da mesma forma, a mãe pode se identificar com o sofrimento do filho e senti-lo quase tão nitidamente como se fosse seu. Mas ela não sente o sofrimento de outras crianças de forma tão íntima, pois não as encara como suas e, portanto, não se identifica com as alegrias e tristezas delas de modo tão intenso. O Buda certamente não estava se recusando a admitir a existência do sofrimento; mas estava desafiando a suposição de que ele surge inerentemente em função de si mesmo ou de qualquer outro fenômeno inerentemente existente. Em outro diálogo, ele também rejeita a suposição de que a felicidade surge inerentemente de alguma daquelas quatro maneiras.

Quando conseguimos ver que as alegrias e tristezas não existem em si mesmas, mas só em relação ao modo como as encaramos, deixamos de ser vítimas de nossos sentimentos e emoções. Eles não chegam a nós por si mesmos; na realidade, nós os sentimos de acordo com a nossa atitude em relação a eles. Desde que não nos identifiquemos com eles, mas simplesmente os observemos surgir em nossa experiência, eles não nos arrasam. Podemos, então, aprender a, deliberadamente, adotar novas atitudes com relação a essas emoções. Podemos usar a dor para desenvolver maior solidariedade e compaixão pelos outros e, quando surgir a alegria, podemos oferecê-la aos outros em vez de tentar nos agarrarmos a ela para fazê-la durar. Às vezes, não há muita coisa que possamos fazer para alterar o ambiente ou o comportamento de outras pessoas, mas podemos alterar nossa experiência dos eventos e as respostas emocionais a eles, modificando o modo como pensamos sobre eles. Essa é uma rota prática para a liberdade. Existe todo um gênero de práticas no budismo tibetano conhecido como “treinamento mental” (lojong), que está voltado para mudar nossa experiência de felicidade e sofrimento, alterando nossas atitudes com relação a eles. Perceber a natureza não inerente de nossos sentimentos e emoções é essencial para todas essas práticas.

Nada existe algo que seja, em si, independente, não podendo, portanto, produzir outra coisa que exista em si ou por si mesma. Falando em termos relativos, as coisas surgem, de fato, em função de causas e condições. Mas também dependem, para sua existência, de suas partes e atributos. Uma carruagem, por exemplo, é criada por um carpinteiro, mas sua existência também depende de suas partes, como o chassi, as rodas e o banco. Além disso, para existir, uma coisa deve ser rotulada pelo que é. Se houvesse apenas um chassi, rodas e banco, não haveria uma carruagem antes que alguém a rotulasse como tal. Do mesmo modo, o corpo e a mente não são inerentemente uma pessoa, mas “eu” passo a existir quando este rótulo é atribuído a um corpo e a uma mente. Mesmo o espaço e o tempo não têm existência absoluta, independentemente da mente que os concebe. Assim que qualificamos as coisas de acordo com o uso aceito, pode-se dizer que elas existem nesta moldura convencional. Apesar das aparências ilusórias em contrário, nada existe independentemente de tais molduras da linguagem e do pensamento.

Um mundo de ilusão

Embora os ensinamentos de Buda registrados na língua páli incluam explicações da natureza vazia e insubstancial de todos os fenômenos, e não apenas da falta de identidade inerente das pessoas, inúmeros discursos mahayana atribuídos ao Buda abordam o tema de forma muito mais minuciosa. Acredita-se que tais ensinamentos expressam a “Perfeição da Sabedoria”, pois derramam luz sobre a natureza fundamental da realidade. A delusão da existência inerente age como base para nos apegarmos a nós mesmos como agentes absolutamente distintos, independentes. Isso, por sua vez, cria a ilusão de uma divisão absoluta entre nós mesmos e os outros. O que leva à fixação ao “nosso” lado e à atitude defensiva e hostil contra o “outro” lado, resultando em ansiedade, frustração e conflito. E a consequência de toda essa sequência de eventos mutuamente dependentes é o sofrimento incessante. Perceber a profunda interdependência de todos os seres conjuntamente com nosso ambiente natural é a chave para a libertação do sofrimento. Por essa razão, isso é chamado Perfeição da Sabedoria, o ponto mais alto de todos os ensinamentos budistas.

Um dos discursos mahayana mais famoso é o Sutra do Lapidador de Diamantes, que tem sido estudado, praticado e reverenciado há dois milênios de um extremo ao outro da Ásia. Nele, o Buda declara que para alcançar a perfeita iluminação, a pessoa deve compreender que nenhum objeto da percepção existe independentemente de sua percepção. Os objetos percebidos, como visões e sons, não existem independentemente das faculdades pelas quais são experimentados. E os objetos conceituais, como campos eletromagnéticos e gravidade, não existem independentemente das mentes que os concebem. Por exemplo, quando uma árvore cai numa floresta, ela só faz barulho se houver alguém com ouvidos para escutá-lo. Animais e humanos ouvem o som por meio de suas faculdades auditivas. Uma raposa, por exemplo, ouvirá o som de modo diferente de uma cobra. Quando uma árvore cai na floresta, nós, seres humanos influenciados pela ciência moderna, dizemos que ela produz ondulações na atmosfera ou “ondas sonoras”, atinjam ou não essas ondulações os tímpanos de alguém. Mas, as teorias científicas e as imagens mentais de propagação de ondas só existem em relação às mentes que as concebem. Seres inteligentes extraterrestres poderiam visitar a Terra com uma noção de “ondas” muito diferente do modo como a ciência contemporânea as concebe. Portanto, não tem sentido falar de ondas independentemente das molduras conceituais e linguagens.

Todos os objetos da mente parecem existir de forma independente, cada um isoladamente. Mas isso é uma ilusão. Nossas mentes subjetivas parecem existir de forma independente, cada uma isoladamente. O que também é uma ilusão. Isso não significa que a mente e todos os objetos da mente sejam absolutamente inexistentes. Sem dúvida, existem como aparências para a mente – uma mente que também não tem existência independente das suas aparências. Essa é a essência última de todos os fenômenos e se afirma que quem compreende isso “conhece o Buda”. O discurso do Sutra Lapidador de Diamantes conclui com os versos:

Todos os fenômenos condicionados são como

Um sonho, uma ilusão, uma gota de orvalho

E um clarão de relâmpago.

Contemple-os deste modo.

Esses ensinamentos do Buda, registrados na Índia pela primeira vez há dois mil anos, causaram mais tarde um impacto enorme sobre a herança cultural e espiritual do Tibete, onde foram preservados e praticados por mais de mil anos. Dudjom Rinpoche, um eminente estudioso contemplativo tibetano do século XX, que era encarado como uma reencarnação de Dudjom Lingpa, explicou como conferir à natureza dos objetos que aparecem a nossas mentes como sendo externos:

Todos os fenômenos animados e inanimados, incluindo a própria pessoa e os outros, e coisas que são designadas e caracterizadas como obstáculos, demônios e estorvos parecem ser verdadeiramente existentes. Contudo, fora as enganadoras aparências de nossa mente não há nada, seja o que for, que exista na realidade. As coisas de fato aparecem, mas elas não são reais.

As coisas que percebemos em um sonho parecem realmente existir “lá” e vivenciamos a nós mesmos em um sonho como realmente existindo “aqui”, onde quer que estejamos localizados no sonho. Mas todas essas aparências são ilusórias. É possível se aproximar de uma pessoa num sonho, tocá-la como se ela fosse real e sentir a firmeza de seu corpo. Mas não há corpo real que existe independentemente da percepção dessas sensações visuais e táteis. São aparências sensoriais “vazias” de existência substancial, absolutamente objetiva. E a presença física em um sonho, como realmente existente, é igualmente ilusória. Todas essas aparências objetivas e subjetivas existem apenas em relação à percepção delas. Não são inerentemente reais, embora seja possível reconhecer relações significativas, causais, entre os eventos que têm lugar em um sonho. Do mesmo modo, no estado de vigília, as coisas que vivenciamos objetivamente e o senso de nossa identidade parecem existir como realidades próprias. Mas todas essas aparências do estado desperto são ilusórias. A diferença básica é que as aparências no estado de sonho são produtos apenas de nossa percepção individual, enquanto as aparências no estado desperto surgem de uma fonte mais profunda, mais coletiva. (mais tarde no livro, Alan Wallace fala mais sobre isso.)

Como podemos superar nosso modo errôneo de vivenciar a ‘’realidade’’? Dudjom Rinpoche explica como definir a natureza da mente, que tomamos como interna:

Sem trazer coisa alguma à mente, coloque sua percepção em um estado espontâneo, relaxado. Com a atenção voltada para dentro, concentre-se por completo na própria natureza da mente. Ao fazê-lo, surgirá uma “autoclaridade” que não tem objeto, livre dos extremos de elaborações conceituais e livre de qualquer senso de apreender e apreendido, incluindo qualquer observador e observado, experimentador e experimentado, sujeito e objeto. Entre vigorosamente em equilíbrio meditativo nesse estado mesmo, sem inventar coisa alguma, ou contaminá-lo ou alterá-lo.

Esses dois trechos retiados dos escritos de Dudjom Rinpoche, resumem a expicaçao feita anteriormente no livro. Sintetizam a essência mesma da meditação sobre a Perfeição da Sabedoria e pretendem liquidar a delusão de apreender a existência real, essencial, de fenômenos objetivos e subjetivos que se encontra na raiz de todo o sofrimento. Toda a prática budista anterior, incluindo o treinamento em ética, a atenção focada, a observação da mente, conduzem a essa meditação. Contudo, é importante saber que, embora livros como este possam dar alguma ideia de como entrar em meditação, não há substituto para a orientação pessoal de um mestre experiente.

Em outra abordagem, a natureza de todos os fenômenos internos e externos pode ser compreendida pelo exame atento de como eles surgem, como se apresentam uma vez que tenham surgido e como desaparecem. Essa investigação cuidadosa pode ser aplicada tanto aos objetos que aparecem à mente quanto à mente em si. Desse modo, podemos descobrir por nós mesmos que nada surge intrinsecamente de si mesmo, de alguma outra coisa, de ambos ou de nenhum dos dois. Não existimos nem como fenômeno externo nem como fenômeno interno, nem os fenômenos externos e internos subsistem em nós. O sentimento do “eu” e as aparências para o “eu” surgem espontaneamente, mas não têm localização no interior ou no exterior.

A base da mente e tudo o que aparece para ela é o espaço da mente, conhecido como substrato. Durante as horas do dia, todos os elementos do mundo físico, todas as aparências sensoriais e todos os eventos mentais são expostos no domínio desse espaço e são apreendidos pela mente conceitual. Também no estado de sonho, todos os eventos surgem desse espaço da mente e ficam presentes nele, onde, finalmente, tornam a se dissolver. O mestre tibetano do século XIX, Dudjom Lingpa, comentou sobre esse ponto:

Portanto, o espaço, nós mesmos, os outros e todos os objetos percebidos têm o mesmo gosto; certamente não são coisas distintas. Além disso, é a luminosidade do próprio espaço, e nada mais, que faz as aparências se manifestarem. A natureza essencial da mente e seu fundamento é o próprio espaço. Diferentes aparências ocorrem no reino da cognição mental – da límpida, cristalina, sempre presente consciência. A exposição dessas aparências é como os reflexos num espelho ou as imagens de planetas e estrelas numa lagoa de água límpida, cristalina. Assim que a consciência límpida, cristalina, se retira para o domínio central de espaço difuso, vazio, ela é dirigida para dentro. Nesse momento, a mente e todas as aparências desaparecem ao se disseminarem infinitamente no vazio eticamente neutro, difuso. Por meio da força da autocompreensão, a natureza essencial dessa grande e difusa vacuidade, a base dos fenômenos, surge como a mente e seus pensamentos. Isso é certo.

Essa passagem se refere ao espaço do substrato, um espaço luminoso e vazio do qual surgem todas as aparências objetivas e subjetivas. (Alan Wallace explica detalhadamente este tópico no capítulo 12 do livro.). Quando acordamos de manhã, todas as aparências sensoriais do mundo à nossa volta surgem de nosso substrato e dentro de seu espaço. Como imagens holográficas, visões, sons, cheiros, gostos e sensações táteis não existem por si mesmos no mundo objetivo independentemente desse espaço da mente, embora pareçam estar totalmente “lá”. Do mesmo modo, todos os nossos pensamentos discursivos, imagens mentais, desejos e emoções surgem dentro do substrato. Quando caímos num sono profundo sem sonhos, todas as aparências sensoriais e mentais tornam a se dissolver no substrato e, quando sonhamos, todas as aparências do sonho surgem no substrato como reflexos num espelho ou imagens de planetas e estrelas numa lagoa de água límpida, cristalina.

A própria divisão entre sujeito e objeto ocorre devido a causa primária de nos apreendermos como agentes independentes. Então, a causa secundária – conceitualização – desencadeia o emergir de aparências do espaço. Quando retiramos nossa designação conceitual de algo como existente, a coisa parece se deteriorar ou desaparecer inteiramente. Todos os fenômenos são meras aparências que surgem de eventos mutuamente dependentes, nada mais, e absolutamente nada existe de fato como realidade própria.

Esses temas como o vazio e origem dependente, remontando aos ensinamentos originais do Buda, encontram paralelos na história da filosofia e da ciência europeias. Um dos primeiros foi o movimento filosófico do empirismo, que começou no século XIV com os escritos do frade franciscano William de Ockham (c. 1285-1349). É uma teoria filosófica do conhecimento que enfatiza o papel da experiência na formação de ideias, em especial da percepção sensorial, ao mesmo tempo que descarta a noção de ideias inatas. O empirismo tem sido interpretado de diferentes modos por gerações de filósofos desde o século XVIII. Avanços na física do século XX fortaleceram esta visão, levando a conclusões bastante similares às do budismo.


Prática: O vazio da Matéria

Descanse o corpo, fala e a mente no estado natural, depois ponha a percepção em repouso – firmemente, claramente, sem quaisquer elaborações conceituais, sem ter algo sobre o que meditar – no espaço diante de você.

Agora dirija a atenção para um objeto no mundo físico, por exemplo o seu próprio corpo. Examine as aparências que você designa como “corpo”. Diretamente, com o mínimo possível de revestimento conceitual, observe as aparências visuais do corpo e as sensações táteis dentro e na superfície do corpo. Alguma dessas aparências individuais é realmente seu corpo? Ou são simplesmente aparências, cada uma com seu próprio nome? A aparência visual do braço é apenas uma aparência visual de um braço, não um corpo.

Do mesmo modo, as sensações táteis de solidez, calor e movimento dentro do corpo são simplesmente sensações táteis, não um corpo. Se você examinar os constituintes individuais do corpo, descobrirá que cada um tem seu próprio nome, mas nenhum deles é seu corpo. Fora todas essas partes e qualidades constituintes, fora todas essas aparências individuais, você pode identificar seu corpo como uma entidade distinta que tem esses atributos e exibe essas aparências? Qual é a natureza do corpo como coisa real, tendo uma realidade própria? Está em algum lugar para ser encontrado, entre suas partes ou separado delas? Ou, no processo desta investigação, você acaba ficando com um “não encontrado”, um vazio do corpo em que nem mesmo o rótulo permanece?

Pense em todos os elementos de sua experiência imediata do mundo físico: coisas que são sólidas, líquidas, quentes ou frias, e coisas que estão em movimento. Quando você procura a natureza real, inerente desses elementos, consegue dscobri-la entre as partes constituientes das coisas ou independentemente delas? Tudo traz propriedades intrínsecas ou todas estas são apenas rótulos projetados em aparências ilusórias? Até mesmo a categoria “aparências” é um  constructo humano. Do mesmo modo, as categorias de “sujeito” e “objeto” e mesmo “existência” e “não existência” são criações da mente conceitual e não tem existência fora da mente que as concebeu.

Mesmo se concluir que todas essas aparências são insubstanciais e vazias, pense se este rótulo de “vazio” é algo mais que uma palavra, um conceito. Na formação do mundo da experiência, primeiro apreendemos nossa existência e, com base nela, identificamos outras coisas como existindo isoladas de nós. Elas sao trazidas ao mundo pelo processo de identificar conceitualmente objetos com base em meras aparências para a percepção. Assim que reunimos um objeto a nossos pensamentos pela qualificação, ele parece existir independentemente de nossos processos de pensamento. Então, quando as aparências mudam e retiramos nossa projeção conceitual de um objeto, ele parece desaparecer. Todos os fenômenos são meras aparências, que surgem de eventos mutuamente dependentes e nada mais. Com um exame cuidadoso, não descobrirmos absolutamente nada que tenha de fato uma existência própria.

Além disso, quando você dorme, todas as aparências objetivas da ralidade da vigília – incluindo as aparências do mundo inanimado, os seres que habitam o mundo e todos os objetos que se manifestam aos cinco sentidos – se dissolvem na vacuidade do substrato. Depois, quando você acorda, o senso de “eu sou” se reafirma e, como antes, da aparência do eu todas as aparêcias internas e externas – incluindo as do mundo inanimado e animado e os objetos sensoriais – emergem como um sonho do substrato. No meio dessas aparências internas e externas, identificamo-nos com algo como “eu” e “meu” e apreendemos os outros como existentes por si mesmos. Assim, perpetuamos a delusão da natureza inerente de todos os fenômenos. Só com o reconhecimento da natureza vazia, luminosa da mente e de todas as aparências, encontraremos de fato libertação dessa delusão e passamos a ver a realidade como ela é.


22819671414fed798233.jpg-sizedB. Alan Wallace é um dos mais prolíficos autores e tradutores do budismo tibetano no Ocidente.Foi monge budista durante quatorze anos nas décadas de 70 e 80. Mais tarde, recebeu o título de Ph.D. pela Universidade de Stanford e atualmente dirige o Instituto Santa Barbara para Estudos da Consciência. Este ano a editora Lucida Letra lançará dois importantes livros de Alan Wallace em português.: “Felicidade genuína: meditação como o caminho para a realização” e  “Aquietando a mente”. Para ser avisado quando os livros forem lançados, clique aqui e cadastre-se. 

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